Amante sim, mas com direitos

Apesar de figurarem como desprovidas de direito pela legislação brasileira, as uniões estáveis extraconjugais vêm conquistando o reconhecimento tanto de doutrinadores como de juízes de Varas de Família. Em Goiânia, são dezenas de acordos celebrados na Justiça entre a esposa oficial e a “outra” em situações como recebimento de pensão, seguros e até partilha de bens provenientes de herança.

Há também sentenças de primeiro grau reconhecendo essas uniões, que são duradouras, e os direitos das amantes, mas, em regra, elas são derrubadas no Tribunal de Justiça ou em instâncias superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que têm postura mais conservadora.

O Código Civil Brasileiro é relativamente novo, tem 12 anos, mas manteve em seu texto cláusulas dó Código anterior, de 1916, que consagram a monogamia como um fator jurídico a ser preservado de qualquer forma, mesmo com a existência de fato – e não é de hoje – de uniões fora do casamento tão antigas ou mais que a formal, públicas, do conhecimento de todos. No entanto, quando o homem morre – todas as situações que chegaram à Justiça de Goiás envolvem homens “infiéis” –, a companheira “clandestina” fica sem direitos. É essa situação que dá origem ao posicionamento inovador de juízes e doutrinadores.

Para a juíza Sirlei Martins da Costa, da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, os tribunais deveriam ter uma abertura maior para aceitar os direitos que nascem dessas situações. “Os tribunais superiores foram muito abertos para outras questões, como o casamento homoafetivo, mas mantêm uma postura muito fechada em relação a essa instituição”, observa. Nas audiências desses processos – geralmente abertos pela não oficial, com a morte do companheiro, para ter direitos reconhecidos –, surgem situações insólitas, que muitas vezes evoluem para acordos e reconhecimento não previstos na legislação.

Em um deles, a esposa fez questão de justificar que, embora a outra demonstrasse mais sofrimento, chorando, fazendo escândalo, ela também sofreu com a morte. “Sei da dor que eu senti, mas sofri do meu jeito”, narrou ela à juíza. Sim, as duas estavam ao lado do caixão.

Outro caso com desfecho surpreendente foi o de um comerciante que trabalhava com a outra em uma lanchonete. Com a renda do empreendimento, ele comprou imóveis em seu nome. Quando ele morreu, a mulher não reconhecida buscou a Justiça. As mulheres fizeram acordo. “Foi interessante a ética da esposa oficial. Como a outra havia pago os impostos dos imóveis, ela fez questão de entregar a parte devolvendo também o valor pago”, relata Sirlei. Ela diz que os casos em que há consenso são mais fáceis. Os que vão para litígio, não.


ALIMENTOS – A juíza da 4ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, Maria Cristina da Costa, proferiu uma decisão inédita no ano passado. Ela condenou um profissional liberal a pagar pensão alimentícia à mulher com quem ele manteve um relacionamento paralelo ao casamento durante mais de 20 anos.

Mais velho, ele sempre dizia à outra que iria deixar a família para se casar com ela, o que nunca aconteceu, embora ele tenha chegado a comprar uma casa, onde a instalou. Ela dependia economicamente dele e sabia que ele era casado. Com o fim do relacionamento, ela pediu o reconhecimento da união estável, partilha de bens e alimentos. A juíza concedeu apenas os alimentos. As duas partes recorreram ao TJ.

“O processo foi instruído, ouvi testemunhas. Ela dedicou toda sua juventude a ele, não se profissionalizou”, relata a magistrada. “Houve uma ligação afetiva forte entre eles, gerando o dever de responsabilidade e solidariedade entre companheiros, por isso o condenei a pagar a pensão”. Maria Cristina explica que esse caso foi bastante específico. “No geral, é mais complicado julgar, embora exista a tendência a ter esse direito reconhecido”, diz a juíza. O entendimento é de que a legislação privilegia quem tem vínculo formal, deixando desamparada a família que não possui essa característica.

“A pessoa pode escolher ter uniões paralelas. Essas relações existem e vão continuar existindo”, diz Maria Cristina. Ela explica que a ideia é responsabilizar as pessoas pelas escolhas que fazem ao longo da vida afetiva. A regra, observa, é litigar, mas há muitos casos em que as partes chegam a acordo. “É preciso ver cada situação. Não há regra. Cada relação é um universo, é preciso olhar a história de vida de cada um”, diz.
 

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