Paulo Guedes, que a população não vê ao vivo há três dias porque está trabalhando em casa por integrar o grupo de risco, age como quem tem um caminhão de limões e pretende fazer com eles uma limonada – no caso, exclusiva para um setor apenas do que ele chama de agentes econômicos. É evidente que o ministro parece determinado a tirar proveito da situação catastrófica estabelecida pela pandemia para fazer uma nova reforma trabalhista, atropelando a legislação específica e desconsiderando os sindicatos como interlocutores dos trabalhadores.
Estes outros “agentes econômicos”, os assalariados, pela medida provisória mais recente, podem ser postos de férias compulsoriamente sem as antecipações de praxe, perdem feriados e folgas futuras para pagar parte do tempo de confinamento, correm o risco de acabar devendo trabalho aos patrões e, para arrematar, ficam, temporariamente, sem novos depósitos nas contas do FGTS. Nada haveria de espantoso nisso tudo, dado o quadro de mobilização nacional, se tivesse havido negociação com os representantes dos trabalhadores ou mesmo se as entidades que eles custeiam para representá-los fossem admitidas nos acordos entre patrões e empregados. Mas, não, isso não aconteceu.
Apavorado com o descontrole do dólar, o precipício nas bolsas, a recessão profunda que se aproxima, o risco de desabastecimento, o abandono de qualquer compromisso fiscal, o rumo negativo do PIB, as concessões exigidas pelos governos em relação a dívidas e investimentos e a pressão para remanejar gastos na direção da saúde, além de planos de socorro pela socialização de prejuízos mendigados por empresas de vários setores, Guedes e sua trupe conseguem imaginar saídas que, com a desculpa de defender empregos, empurram para mais perto da linha da miséria os trabalhadores que têm menos condições de se defender. A desigualdade, conforme reza o discurso neoliberal, é um problema para se analisar depois, lá na frente, quando a economia tiver chegado ao paraíso.
Como o rumo atual está na contramão dessa utopia, terá alguém sugerido que bancos e empresas que tenham acumulado grandes lucros nos últimos anos adiantem, por exemplo, o imposto de renda de exercícios futuros, elevado em alguns pontos, para contribuir no esforço contra a pandemia? Limitar imediatamente as retiradas de lucros e dividendos a níveis decentes, compatíveis com as necessidades da economia de guerra, seria uma medida viável, transformando o que sobrar em investimento emergencial contra a pandemia? Reverter, negociadamente, os reajustes salariais de categorias privilegiadas do funcionalismo, como contribuição ao combate da calamidade, teria viabilidade?
Pelo que depreende da entrevista que Paulo Guedes deu ao Estadão de hoje, 24, sobre o põe e tira do corte de salários na MP trabalhista, o que se tem é a resposta negativa e veemente a qualquer dessas possibilidades. E haveria mais violência se o plano original tivesse avançado. É fácil concluir, pelo descompromisso com a articulação lógica por parte do ministro, que o confisco salarial por quatro meses era um balão de ensaio que não subiu e que não foi feita nenhuma conta que de fato considerasse a possibilidade de dar alguma remuneração aos afastados.
“Tem de fazer o cálculo”, disse o próprio Guedes ao ser perguntado sobre quanto poderia custar aos cofres públicos a possibilidade de suplementar o pagamento de parte do salário de empregados em empresas privadas que viessem a congelar atividade e quadro funcional por até quatro meses. Se nem sabe quanto, o que dizer sobre de onde se tirariam esses recursos? Nada. Não havia essa previsão. A pressão do empresariado, como revela nota no Radar, que pode ser lida aqui, é para que o governo banque 70% dos salários nos setores praticamente paralisados.
E não há ainda, do mesmo modo, nada que oficialize o pagamento dos tais R$ 200 reais aos informais que estão nas ruas a esta altura sem clientes, sem o curto capital que financia suas vendas e sem trocados para levar para casa. A notícia mais recente sobre essa medida cujo valor já é absolutamente insuficiente informa que será editado um projeto de lei a respeito. Ou seja, quando o benefício chegar, talvez ajude a pagar alguns enterros.
O risco Bolsonaro
Na dobradinha Bolsonaro-Paulo Guedes, só uma coisa mudou de fato nos últimos dias, em razão da pandemia: o presidente dá mostras de querer contornar por caminhos diferentes o estrago que o vírus e a derrocada econômica fazem com suas perspectivas eleitorais para 2022. Isso depois de até apoiadores seus andarem distribuindo mensagens azedas nas redes sociais, chamando-o de irresponsável, o que repercutiu nas suas atitudes mais recentes, um tanto mais conformadas com as medidas de contenção dos riscos de sobrecarga nos hospitais.
Mas Bolsonaro, que teve desde o início a opção de dizer que não entende de epidemia assim como não sabe nada de economia e fez carreira como deputado montado num discurso que contraria quase tudo o que Guedes pensa e implementa sobre contenção de gastos, é uma incógnita perigosa. Assim como assinou sem ler a controversa MP dos salários e mandou Guedes tirar a proposta na reedição da medida, pode, a qualquer momento, tentar imitar Trump, opondo-se às medidas contra o vírus que mais impactam a economia e aproveitando-se do estado de calamidade para produzir um festival de generosidades que comprometa de vez as finanças públicas.
Do ponto de vista dos que mais dependem do Estado para sobreviver, esse coquetel seria como um banho quente antes da execução.
Para pensar
A lógica perversa da epidemia mostra que ela matará prioritariamente idosos mais pobres. Espera-se que isso não seja visto como uma oportunidade de aliviar gastos no longo prazo nas aposentadorias, pensões e benefícios de prestação continuada. É o que pode acontecer quando se aplica o raciocínio de Trump, segundo o qual não há mortes suficientes nem significativas a ponto de justificar a paralisação de vários segmentos econômicos.