Governo contraria viés liberal da Economia e Agricultura ao investigar alta do arroz

O Ministério da Justiça contrariou estratégia liberal das pastas da Economia e da Agricultura ao notificar nesta quarta-feira (9) supermercados e produtores a explicar o aumento do preço de alimentos da cesta básica.

A cobrança foi feita pela Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor). Os esclarecimentos terão de ser dados por Abras (Associação Brasileira de Supermercados) e representantes de produtores em cinco dias. São 65 redes varejistas e cooperativas na mira do Ministério da Justiça.

Assessores ministeriais afirmam que a medida surpreendeu as pastas de Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura). Os ministérios vinham trabalhando em uma ação de mercado contra a alta dos preços, especialmente a do arroz.

A principal medida era a suspensão do Imposto de Importação sobre o arroz, o que foi aprovado pela Camex (Câmara de Comércio Exterior) também nesta quarta.

Ao facilitar a importação, a Agricultura considera que haverá mais oferta e, assim, o preço cairá.

Esse movimento de ampliação da oferta será ainda completado com o término da colheita da safra de arroz. Segundo a associação de produtores, hoje ela está em 58%.

Guedes concordou e deu aval para que representantes do ministério na Camex, espécie de comitê comandado pela pasta, deliberassem favoravelmente pela tarifa zerada.

No entanto, enquanto ele estava reunido com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o presidente da Abras, João Sanzovo Neto, foi feito o anúncio da notificação pela Senacon. A pasta da Justiça é comandada por André Mendonça.

Para a Senacon, o alerta da alta de preços foi dado justamente pelo arroz, que, "apesar dos positivos volumes produtivos da última safra, sofreu diminuição da oferta no contexto global". Esse descompasso levou ao aumento do preço.

"Não podemos falar em preços abusivos sem antes avaliar toda a cadeia de produção e as oscilações decorrentes da pandemia [da Covid-19]", disse Juliana Domingues, secretária nacional do Consumidor.

Caso haja confirmação de abusos na formação dos preços, a Senacon poderá aplicar multas. Os valores podem passar de R$ 10 milhões.

Ex-dirigentes e técnicos da Senacon consultados pela Folha afirmam que, embora seja papel da secretaria fazer investigações, a atual medida soa como pressão política, já que oscilações de preços são esperadas no livre mercado, defendido por Guedes.

O chefe da Economia, contudo, enfrenta resistências, especialmente da ala militar do governo, que prefere medidas mais intervencionistas.

Ex-integrantes da equipe econômica, que pediram anonimato, viram no anúncio da Senacon um viés estatal. Eles classificaram a ação como o primeiro passo rumo ao tabelamento praticado no governo do José Sarney, dos anos 1980.

Na época, os chamados fiscais do Sarney iam às ruas monitorar preços. Diferentemente do momento presente, a inflação atingia um dos maiores patamares da história —hoje, o menor.

Há quem discorde, porém. Para Ricardo Morishita, ex-diretor do Departamento Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor (2003-2010), é papel da Senacon fazer apuração preliminar, "ainda mais se tratando de item tão sensível ao bolso dos brasileiros".

"O problema é que existem dois tipos de economistas: os históricos, que preferem aguardar os movimentos de mercado [ajustes de preços pela lei de oferta e procura], e os histéricos, que divergem dos históricos exigindo medidas intervencionistas", afirmou Morishita.

A medida da Senacon surpreendeu o presidente da Abras. Sanzovo Neto disse que não foi avisado por Bolsonaro da decisão do Ministério da Justiça.

"Ele [Bolsonaro] não sabe dessa notificação. Deve ser uma notificação de rotina para prestação de informação e nós faremos isso tranquilamente", afirmou.

Na saída do encontro, ele disse que o setor não pode ser responsabilizado pela alta de preços. Segundo Sanzovo Neto, a causa são problemas de produção e a alta no câmbio.

"Nós não vamos ser vilões de uma coisa da qual não somos responsáveis, muito pelo contrário", afirmou.

Sanzovo Neto fez uma sugestão aos consumidores: "​Nós vamos promover o consumo de massa, que é o macarrão, que é um substituto do arroz. E vamos orientar o consumidor a não fazer estoque. Porque quanto mais estocar, mais difícil fica a situação".

Uma campanha será realizada para estimular a troca.

Pouco depois do encontro de Sanzovo Neto com Bolsonaro e Guedes foi anunciada também a decisão da Camex. A medida zerou a tarifa de importação sobre 400 mil toneladas de arroz até o fim deste ano.

A alíquota de importação para países de fora do Mercosul é de 12% para o arroz e de 8% para soja e milho. Dentro do bloco, a tarifa é zero. Soja e milho deverão entrar em debate em outra rodada de discussão.

Em nota, a Abiarroz (Associação Brasileira da Indústria do Arroz) disse reafirmar compromisso com o abastecimento do mercado interno. A entidade afirmou que as políticas de isolamento impuseram dificuldades de distribuição do produto, "que está concentrado em poder de poucos produtores".

Segundo a entidade, nos últimos 25 dias, houve alta de mais de 30% no custo da matéria-prima, além do reajuste já ocorrido em decorrência do aumento da demanda no início da pandemia.

Procurada, a Abia, que representa a indústria de alimentos, não respondeu até a conclusão deste texto.

No início da noite desta quarta-feira, Bolsonaro disse a um grupo de simpatizantes que o setor varejista está empenhado em reduzir o preço da cesta básica.

"Está sendo normalizado isso. Não vamos interferir no mercado de jeito nenhum. Não existe canetaço para resolver o problema da economia", disse o presidente na entrada do Palácio da Alvorada.

Desde sexta-feira (4), o presidente tem feito apelos aos varejistas pedindo patriotismo para que eles evitem o repasse para o consumidor.

Na terça-feira (8), o presidente fez novo apelo. "Ninguém vai usar caneta Bic para tabelar nada. Não existe tabelamento. Mas [estamos] pedindo para eles [mercado] que o lucro desses produtos essenciais para a população seja próximo de zero", disse​

Associações do varejo divulgaram cartas públicas alertando para o aumento de preços. A alta chega a superar 20% no acumulado de 12 meses em produtos como leite, arroz, feijão e óleo de soja —itens da cesta básica.

O IPCA (Índice de Preço para o Consumidor Amplo) —a inflação oficial— acumula alta de 2,44% nos 12 meses até agosto. Mas, apenas em 2020, os alimentos acumulam alta de 4,91%.

Segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), os preços de alimentos básicos aumentaram em 13 das 17 capitais pesquisadas em agosto. Nas demais, caiu.

Em São Paulo, a cesta básica custou R$ 539,95, alta de de 2,9% na comparação com julho.

Na pesquisa da entidade, no ano, o preço do conjunto de alimentos necessários para as refeições de uma pessoa adulta aumentou 6,6% e, em 12 meses, 12,15%.

Os supermercadistas têm rechaçado o tabelamento de preços. Eles defendiam a retirada de tarifas de importação.

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