A 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) rejeitou o pedido de horas extras de um vendedor da fabricante de cigarros da Souza Cruz por entender que o funcionário tinha autonomia para definir seus horários e a forma de cumprimento do itinerário. A decisão, em que prevaleceu o negociado sobre o legislado, foi unânime.
No seio da controvérsia está a 26ª cláusula de um acordo coletivo de trabalho firmado entre o Sindicato dos Empregados Vendedores e Viajantes do Comércio no Estado do Rio Grande do Sul e a Souza Cruz para o período de 2016 a 2018.
A norma estabelece que os empregados “que exercerem função externa e por terem total autonomia para definir seus horários de início e término de trabalho, assim como a forma de cumprimento de seu itinerário, não são subordinados a horário de trabalho, conforme preceitua o inciso I do art. 62 da CLT”.
Os detalhes do processo em que prevaleceu o negociado sobre o legislado
O vendedor atendia estabelecimentos comerciais de segunda a sexta-feira das 7h às 19h, e até às 21h na última semana de cada mês. Aos sábados, em média duas vezes por mês, trabalhava das 7h às 15h.
Ele sustentou que a empresa mantinha “estrito e regular controle sobre os tempos, trajetos e movimentos”, até mesmo de forma online e em tempo real, de modo a afastar a exceção ao regime de jornada de trabalho estabelecida pelo artigo 62 da CLT.
Para a Souza Cruz, o vendedor exercia atividades externamente e sem controle de jornada, enquadrando-se “perfeitamente à previsão inserida nos ordenamentos coletivos aplicáveis à relação sob comento”.
A fabricante de cigarros argumentou que a negativa da validade e eficácia de normas coletivas afronta preceitos constitucionais e legais, além de privilegiar “interesses individuais em detrimento da ordem pública e dos interesses coletivos da categoria, o que jamais poderá ser admitido”.
Julgamentos
A 1ª Vara do Trabalho de Pelotas (RS) julgou que o trabalhador não estava submetido a controle de jornada, mas de produtividade, com a necessidade de cumprimento das obrigações contratuais, e não reconheceu o direito a horas extras.
O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) reformou a sentença e determinou o pagamento das horas extras, considerando que a “previsibilidade em relação à quantidade de visitas/clientes e o tempo estimado à cada visita” permitiria a fixação de jornada.
O relator do recurso no TST, ministro Breno Medeiros, citou a tese vinculante fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do ARE 1.121.633 (Tema 1.046 da repercussão geral), que versou acerca do negociado sobre o legislado. De acordo com a decisão, são constitucionais normas coletivas que afastam direitos trabalhistas, salvo os absolutamente indisponíveis.
Para o ministro, a previsão da norma coletiva não está circunscrita a direito absolutamente indisponível nem define algo ilegal. “Nesse sentir, não há como desprestigiar a autonomia da vontade coletiva das partes”, afirmou.
Medeiros disse que a existência de metas e rastreamento não tira a autonomia do empregado para definir seus horários de início e término de trabalho, assim como a forma de cumprimento de seu itinerário, como expresso no acordo coletivo.
Repercussão
O advogado trabalhista Ronaldo Tolentino, que atuou em favor da Souza Cruz, lembrou que o Tema 1.046 (negociado sobre o legislado) é um precedente relativamente recente e a jurisprudência em torno na matéria está em processo de consolidação no que se refere a quais direitos podem ou não podem ser negociados.
“A decisão do TST é importante no sentido de dizer que o controle de jornada de trabalhadores externos é passível de negociação coletiva. Privilegia a decisão do Supremo e a jurisprudência que vem se firmando em relação a esse tema, que é muito comum em alguns empregos”, avaliou Tolentino, que também é presidente da Comissão de Direito do Trabalho do Conselho Federal da OAB.
De acordo com o ex-ministro do TST Alberto Bresciani, quando o sindicato e a empresa submetem a classe trabalhadora ao regime de trabalho externo, previsto no artigo 62 da CLT, eles concordaram que a relação passaria a ser regida pela norma coletiva.
“A inobservância não seria da disciplina do artigo 62, mas, caso houvesse, da norma coletiva, o que não se discutia nos autos. Por essa razão, a 5ª Turma [do TST] entendeu, ao meu ver muito bem, que seria um caso de prevalência do negociado sobre o legislado.”
Carlos Julio Garcia Martinez, que representou o trabalhador, disse que respeita a decisão, mas não concorda com ela. O advogado afirmou ser preocupante a deterioração do poder dos sindicatos, permitindo a negociação de “cláusulas que não têm qualquer lógica”.
“Torço para que essa seja uma decisão realmente isolada, que não venha a caracterizar o padrão, principalmente no TST. Porque isso denotaria uma espécie de cheque em branco para as empresas fazerem o que bem entendem com os trabalhadores.”
O processo tramita sob o número 20364-97.2018.5.04.0010