O anúncio da autorização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) da comercialização no Brasil de remédios à base de cannabis, nome científico da maconha, chegou esta semana sem permitir o cultivo da planta. Isso significa que o processo de acesso ao medicamento deve ser menos burocrático a partir de agora, além de ser um incentivo para que mais profissionais estudem sobre como prescrever o cannabidiol. Mas a impossibilidade de cultivo em território nacional para pesquisa e produção ainda preocupa especialistas na área.
A professora da escola de agronomia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Abadia dos Reis Nascimento, diz que reunir conhecimento técnico sobre este assunto é importante. “Quando chegar a hora temos que estar prontos. Temos todos os fatores favoráveis para o cultivo da cannabis e temos que investir nisso”, diz. Desta quinta-feira (5) até o próximo sábado acontece no Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) e na Escola de Agronomia da UFG o Simpósio de Cultivo de Cannabis Sativa no Cerrado para Uso Medicinal.
A professora destaca que a aprovação de venda de produtos à base da cannabis é um passo importante, mas ter a obrigação de trazer este medicamento de fora ainda é um retrocesso. “Sabemos que o cerrado, por exemplo, é propício à plantação. Se já tivéssemos pesquisas aqui e tivéssemos a liberação de plantio, este mesmo medicamento poderia ter controle de qualidade desde o início de sua produção. Sabemos que o cerrado oferece ótimas condições para a planta e queremos discutir mais sobre isso”, diz.
Ela destaca que o evento contará com palestras e mesas redondas ligadas ao assunto. “Será um evento multidisciplinar. Queremos discutir o plantio, mas também queremos desmistificar muita coisa, com participação de advogados e médicos também.” Ela diz que este é o primeiro simpósio sobre o tema organizado no Estado e que, certamente, muitos outros serão necessários.
Diretor-geral da Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Ágape), Yuri Bem-Hur da Rocha Tejota diz que é positiva a decisão da Anvisa, mas que pesquisar a planta é fundamental. “Não existe só um tipo de cannabis e não queremos o uso desregulado, indiscriminado. Defendemos que o produto esteja disponível para outras doenças, que não apenas a listada pelo Conselho Federal de Medicina”, diz. O CFM só autoriza médicos a prescreverem o uso compassivo do canabidiol no tratamento de epilepsias em criança e adolescentes que sejam refratárias aos tratamentos convencionais.
O médico diretor da Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Ágape), João Carlos Normanha Ribeiro é um dos organizadores do evento e vai falar com os participantes sobre o sistema as aplicações clínicas deste medicamento e como ele atua no ser humano. “Ainda existe muito preconceito e é preciso deixar claro que o uso recreativo da maconha é muito diferente do que se propõe com o uso medicinal. Este é um medicamento diferente de tantos outros, mas para que ele seja usado da melhor maneira, precisamos conhecê-lo. Isso só vai ser possível, de fato, quando pudermos cultivar a planta para pesquisá-la.
Ribeiro destaca que eventos como este são apenas o começo da discussão e defende a participação de toda a sociedade. “Existe uma pesquisa que aponta que pelo menos quatro milhões de pessoas poderiam ser tratadas com a cannabis no Brasil. É um universo muito grande e, infelizmente, a decisão da Anvisa, apesar de facilitar o acesso, ainda não atinge o paciente do SUS. Por enquanto, só facilita o acesso para quem já tem condição de comprar”, diz.
Atualmente, há cerca de 14 mil pedidos em andamento na Anvisa para importar o medicamento. Apenas neste ano, a Anvisa recebeu 5.321 pedidos de compra de remédios com canabidiol, 47% acima das 3.613 solicitações em todo o ano passado. Normanha acredita que a ampliação do conhecimento deve aumentar ainda mais esta lista de interessados.
"Ainda há preconceito”, diz médico
Médico psiquiatra, Airton Ferreira dos Santos Filho diz que ainda existe preconceito na prescrição deste tipo de medicamento. Para ele, a falta de conhecimento é o que mais interfere no acesso da população ao cannabidiol no tratamento contra diversas doenças.
Para ajudar os médicos que desejam acessar estes medicamentos, um treinamento será realizado nesta sexta-feira (6) no Oitis Hotel de 9 às 18 horas. A médica Ana Hounie, membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cannabis Sativa, referência neste assunto, vai explicar para os médicos como proceder.
Este evento é exclusivo para médicos, mas não há restrição de especialidade. Filho diz que a intenção é que profissionais das diversas áreas da saúde participem para conhecerem e despertarem para esta possibilidade de tratamento. Ele ressalta que administrar esta substância de maneira medicinal é diferente de usar a maconha. “Precisamos de mais conhecimento para acabar com o preconceito. Muitas pessoas poderiam ter tratamentos mais adequados e estamos em busca disso com este evento”, explica.
A gerente comercial Maria Aparecida de Lima Ribeiro, de 47 anos, busca o tratamento com o cannabidiol há cerca de dois anos. Ela diz que a luta contra um câncer fez com que buscasse todas as alternativas possíveis. “A cada sessão de quimioterapia eu fico extremamente mal. Acompanho algumas pessoas que já conseguiram e elas tem melhora considerável para dormir, para comer, menos dores. Precisamos de mais médicos que entendam que este é um medicamento que pode melhorar nossa qualidade de vida, que pode mudar a nossa vida”, diz.
Ela diz que se mudou para Brasília para tentar consulta com um médico da Capital Federal que prescreve o medicamento. “Se mais médicos tivessem conhecimento, não precisaríamos fazer essa peregrinação atrás dos ‘médicos prescritores’. Temos grupos no WhatsApp de pessoas que também estão na luta contra o câncer e quando uma pessoa diz que conheceu um médico prescritor, fazemos o possível para ir até ele. Isso tudo porque buscamos uma vida menos dolorosa.”
Ana Hounie vai discutir com os participantes desde a perspectiva histórica e a descoberta do sistema endocanabinoides até as evidências científicas do uso de canabinoides nas diversas patologias-autoimunes, psiquiátricas, neurológicas, entre outras. A questão legal da prescrição também será discutida, assim como as orientação de como precrever estes medicamentos, além das interações medicamentosas. Casos clínicos serão apresentados com depoimentos e detalhes dos resultados. Entre os casos, pacientes com epilepsia, autismo e Alzheimer que receberam tratamento.
Airton Filho diz que o preconceito ainda existe, mas entende que a ampliação da discussão, aos poucos, deve reduzir a recusa. “É natural, inclusive, que mais pessoas tenham interesse e isso faça com que os médicos tenham a necessidade de buscar qualificação. Entendemos que mais cedo ou mais tarde isso vai ocorrer então os profissionais terão que saber como manusear e receitar”, diz.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego) entendem que o cannabidiol “não pode ser considerado medicamento e, portanto, não existe maconha medicinal” e que ainda não existe estudos para definir se a substância pode ou não causar dependência.
Farmacêuticos serão treinados
O Conselho Regional de Farmácia do Estado de Goiás (CRF-GO) informou que vai treinar os farmacêuticos para atender as novas normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). De acordo com a resolução da pasta, os produtos liberados poderão ser para uso oral e nasal, em formato de comprimidos ou líquidos, além de soluções oleosas. Vice-presidente do CRF-GO e fiscal da Vigilância Sanitária, Luciana Calil diz que é importante que o farmacêutico tenha este conhecimento porque é a pessoa mais acessível da população. e poderá orientar da maneira adequada. A comercialização ocorrerá apenas em farmácias e drogarias sem manipulação. Itens serão vendidos prontos, mediante prescrição. Ainda não há previsão para início da comercialização, que irá depender de uma série de fatores, já que são remédios importados. Essa resolução cria uma nova classe de produtos, que passam a ser chamados de “produtos à base de cannabis”.
O medicamento deverá ser prescrito com numeração fornecida pela Vigilância Sanitária. A concentração do Tetra-hidrocanabinol (THC), que é a parte alucinógena da erva, deverá sempre ser menor que 0,2%. Será necessário renovação da receita em até 60 dias. Em casos acima desse percentual, o receituário será do tipo A, semelhante ao da morfina.